22 de julho de 2022

A Vida com uma Doença Crônica e Ultra Rara – Um Breve Resumo.

Deficiência Auditiva Deficiência do Transportado da Riboflavina Deficiencia Fisica Doenças Raras RTD
Por Diéfani Favareto Piovezan

Médicos, muitos médicos. A minha agenda tem sempre pelo menos uma consulta por mês, fora os que fazem o acompanhamento anual.

Terapias com Fonaudióloga, Fisioterapeuta, Terapeuta Ocupacional, Psícologa. A “fono” para ouvir e falar bem, a “fisio” pra não ficar com o tronco mole igual bonecão de posto e não ficar com problemas respiratórios, TO ajuda com adaptações e qualidade de vida e a Psícologa…essa eu já já falo mais.

Mas tem a academia também, porque estar com os músculos fortes, ajuda a frear certos aspectos da progressão e é um tipo de fortalecimento que só a fisioterapia não fornece.

Com o tanto de profissional cuidando de mim, claro que tem mil exames, muitos MESMO, de todos os tipos. Tem épocas que faço exame de sangue 3/4 x por semana para especialistas diferentes. Ressonância magnética é uma novela à parte. Um dia conto.

Passando mal?

Se for ao PA, vários remédios e dependendo do que for, demora horas, os clínicos aguardam os especialistas, mas mesmo os especialistas, às vezes tem medo de fazer algo, então ficam horas tentando contatar os médicos que me acompanham. Nos últimos anos, tenho tentado ir sempre nos serviços do HC da USP Ribeirão, pois faço acompanhamento lá.

Se for direto no consultório dos especialistas que me atendem, começa uma nova saga. Precisa investigar para saber se é algo novo, algo associado à doença genética de base, se é ansiedade ou se tem outros fatores.

Vira, revira, nunca é coisa rápida. São meses de vários exames. Descobrem. Mais remédios. Os 15 comprimidos matinais viram 18. Começa a sessão de estômago doendo, intestino solto, tontura e dor de cabeça. Tem que voltar em todos os especialistas para ver quais medicamentos além dos fixos (tem alguns que vou tomar até morrer), pode alterar. A decisão nunca é individual, precisa sempre ser em conjunto e o consenso muitas vezes demora.

A medicação nunca é alterada apenas uma vez. São duas, três…dez vezes se necessário, até encontrar o que dê certo. Vem adaptação e ajuste de doses. Nesse meio tempo, aparecem mais sintomas esquisitos. Sensibilidade à luz, uma enxaqueca diferente e persistente, arritmia que piora, mais tontura, vômito e náuseas constantes, sobrecarga nos rins que começam a criar cálculos. Os tratamentos vão desde não fazer nada e acompanhar enquanto aquilo se torna rotina e não incomoda mais, até cirurgias.

Estômago piora por causa de medicamentos: é úlcera, lá vem mais remedio para proteger estômago porque não tem um medicamento do qual possam se desfazer, restrição alimentar até cicatrizar.

A conta bancária chora cada vez que o cartão passa na farmácia e tem meses que a conta não fecha. O fixo mensal de medicamentos já ultrapassa a casa dos $ 2000,00. Já tentei pelo estado, mas muitas vezes fiquei sem medicamentos por muitos meses, pois estavam em falta. Pior ainda quando o estado corta verbas e consequentemente algum medicamento.

Além disso, tem manutenção do implante coclear. De forma geral os gastos são apenas com baterias. Cada caixa de baterias dura 20 dias e custa entre $240 e $400. Estado não fornece. Se quebra, o valor é altíssimo. Cada um dos processadores de fala custa mais de $ 40 mil, os consertos nunca ficam abaixo dos $ 3000.

O jeito é solicitar ao convênio, que sempre faz o seu melhor para atrasar tudo ou usa brechas e mais brechas para negar o pedido. Eu inclusive estou com meus dois processadores de fala “novos” aguardando o parecer do convênio. Infelizmente não tenho $ 8000 para consertar. Enquanto isso, uso os velhos.

No meio de tudo isso, rolam mil preocupações. Tem as “bobas e suaves”, aquelas que quase todo mundo tem ou que não fazem parte de ter uma doença crônica e ultra rara. Mesmo assim, requerem muito mais do que o corpo aguenta:

– Cachorra para cuidar

– Casa para limpar, pois mesmo com faxineira semanal, aqui em Ribeirão Preto é muito sujo.  

– Roupa para lavar

– Roupa pra guardar

– Lavar louça

– Manutenção do veículo

– Manter estoque de alimentos com o suficiente para a semana.

E aí tem elas, as preocupações que tiram o sono e causam uma ansiedade absurda que muitas vezes impacta diretamente no quadro:  

– Será que amanhã vou acordar bem? Será que vou acordar?

– Estou sentindo mais fraquezas musculares, tendo mais espasmos será que piorei, estou doente ou é cansaço?

– Será que meus amigos não me chamam mais para nada porque vivo doente e cansada?

– Adoro meus colegas de trabalho (em qualquer empresa), mas tenho sempre sensação de que acham que sou burra ou incapaz. Me sinto uma impostora.

– Vivo com medo constante de estar com emprego por um fio, pois vivo precisando usar da flexibilidade de horário para consultas, internações e o que surgir. É um medo tão real e constante, que atrapalha na vida profissional. No passado, recebi muitas reclamações por “ter problemas de saúde demais” e “é difícil adaptar sua rotina de médicos e terapias”. Já tentaram me fazer tirar licença forçada pelo INSS por coisas que fazem parte da minha rotina. Há alguns anos, o RH de uma empresa disse que eu deveria me aposentar por invalidez, que eles me ajudariam com tudo. Salários nunca foram minha maior motivação, mas é um fato eu precisar dele para pagar terapias e farmácia. Dependo do dinheiro para viver e sobreviver, o dinheiro, obviamente, não depende de mim. Então SIM, toda a questão de trabalho tira demais o sono.

– Na vida acadêmica, sempre o medo de que internações, exames ou idas ao médico possam causar problemas na obtenção do meu diploma (atualmente do doutorado). Em novembro de 2021, fiz cirurgia no braço e o professor achou ruim. Disse que eu não deveria nem ter começado o curso e já que tinha começado, tinha que entregar, para fazer pelo celular. A universidade é americana, eu expliquei que ficaria com um dos braços imobilizado por vários dias e que no hospital (HC da USP) o celular não pegava bem e não tinha wi-fi. Tentei explicar que por morar em país diferente, algumas coisas não são como nos EUA, como ter sinal de telefone com 5G em todo lugar e wi-fi em todo prédio. Ele disse que era minha obrigação entregar os artigos no dia que ele pediu, independente de eu estar no hospital operada ou não. Precisei entrar em contato com a direção da universidade para ele dar uma segurada. Foram dias muito tensos e eu fui fazer a cirurgia com vontade de desistir.

– Acho que na parte social, é o que mais impacta. Passo meses ou anos sem ver amigos, porque sair de casa requer esforço mental e físico. Na maioria das vezes, estou drenada e simplesmente prefiro ficar em casa ou sair com aqueles amigos que gostam de ir em restaurantes e cinema. A maioria das pessoas acaba cansando e não chamam mais.

– Vida romântica, eu nem sei como começar, mas é uma preocupação constante. Eu sou de forma geral, uma pessoa até confiante, mas é impossível não me sentir insuficiente e ter medo de ser trocada por alguém que não tenha deficiências, que anda bem, que consegue ficar em pé por horas sem reclamar, que consegue ir em todo lugar sem precisar se preocupar com acessibilidade, que ouve o tempo todo bem e sem necessidade de tecnologia, alguém que não caia, alguém que tenha boa coordenação motora, alguém que tenha controle integral do próprio corpo.

– Lazer? Bem limitada faço o que aguento e no fim, não são raras as vezes que senti que estava atrapalhando.

– Será que um dia vão achar a cura ou tratamento melhor e mais eficaz? A minha doença em si (Deficiência do Transportador da Riboflavina) teve o gene causador descoberto em 2010. Não há estudos suficiente para dizer como alguém viveu por 20, 30, 40 anos após o diagnóstico. A maioria dos estudos que se encontra, terminam com o óbito do paciente. Sou otimista, mas dizer que não tenho medo do que o futuro me traz, seria uma mentira.

Minhas inseguranças estão todas ligadas ao meu corpo e ao controle que já perdi e que continuo perdendo. Perceber que o corpo não te responde mais como antes, dói, pesa, é desesperador. Não ter certeza do que vai acontecer no futuro, enlouquece.

É uma jornada solitária, porque todo mundo continua vivendo, inclusive eu. Eu não tenho uma rede de apoio. Tenho pessoas que me amam muito, mas cada um tem sua vida, a maioria mora em uma cidade diferente, nem a minha família mora por aqui. A vida moderna nos tira algumas coisas.

E aqui, é o meu deixa para falar da psicoterapia. É o único motivo de eu ainda estar aqui e de cabeça erguida, porque em outros tempos, eu tive atitudes de auto-extermínio e auto agressão. A terapia me ajuda a entender o que passo, é crucial em momentos como a perda da minha mãe, dos meus avós, tios e outros que tanto amo. A ansiedade é uma vilã implacável e ali é onde eu posso desabafar sem julgamentos ou vieses. E é graças à psicoterapia que aos poucos, mesmo em meio ao caos, vou encontrando as partes que se perdem ou que faltam nesse complexo quebra-cabeça que eu sou.

Créditos da Imagem: Convivendo com doenças raras ©