“O Sentido que nos Falta” foi escrito a meu pedido por um amigo com quem tive o prazer de trabalhar em uma ONG, para que relatasse sua experiência e impressões ao trabalhar pela primeira vez com uma pessoa com deficiência auditiva (eu).
O relato que ele me encaminhou foi extremamente tocante, realmente me deixou com olhos marejados e mesmo tendo se passado dois anos, ainda me emociono.
Como muitos dos leitores não me acompanharam como colunista do Amigos da Audição, onde foi postado em 2016, resolvi trazer o texto para o blog, para que todos possam apreciar e se emocionar.
Beijos a todos.
O SENTIDO QUE NOS FALTA
Por Guilherme de Andrade Tittoto
A pedido de uma ex-colega de trabalho que hoje se tornou, gosto de pensar, uma grande amiga, venho a colocar um pouco de nossa história no papel. Digo ‘nossa’, pois eu não pretendo escrever as impressões que ela me deixou, mas as emoções provenientes da relação estabelecida.
Mais do que descrever pré-conceitos que floresceram ao encontrá-la, os conceitos que pude rever e criar em mim através desta amizade.
Primeiro, o choque. Tinha, junto a dois colegas de faculdade, iniciado uma organização estudantil cujas atividades se davam em torno de negócios sociais.
Queríamos desenvolver empreendimentos que concomitantemente ao bom gerenciamento de recursos financeiros e fins superavitários, reduzisse os impactos ambientais da ação humana e empoderasse pessoas em situação de vulnerabilidade, seja qual fossem suas origens.
Neste nobre norte que nos guiava encontrei, entrevistando alguns colegas universitários que queriam se juntar à causa, a primeira vulnerável com quem trabalharia – e aí, meu primeiro pré-conceito, um momento de inocência, de ignorância.
Não sabia, à época, ao vê-la entrar de muletas, óculos desajeitados no rosto e aparelhos de surdez, como tratá-la: o roteiro de perguntas não se encaixaria, não sabia se deveria falar mais alto, duvidei dela sem a conhecer.
Segundo, o pré-conceito. O mundo do politicamente correto pode ser cruel. Pensar em igualdade a todos leva a injustiças sutis.
Assim o foi ao avaliar os entrevistados, pois me passou pela cabeça que, em uma organização civil beneficente sem fins lucrativos, seria bem visto ter alguém com deficiência nos quadros laborais – de mesma forma poderia vir a ser o caso se com idosos, índios, negros, homossexuais, transgeneros etc.
Admito que quando o pensamento me veio à cabeça senti duas coisas: constrangimento, por me permitir pensar algo que entendo errado e mesquinho – principalmente por me considerar tão filiado à filosofia da meritocracia -, e triste, pois percebi que se aquilo se despertara em mim, também deveria vir à mente de outras pessoas e de profissionais responsáveis pela seleção em empresas.
Outra questão: como saber se estaria sendo, na avaliação, meritocrata de fato?
Terceiro, a surpresa. Eu trabalhei com a Diéfani na Enactus por cerca de um ano – e venho a citá-la em nome por todo seu mérito e pelo que me ensinou.
Responsável por cuidar da Tecnologia da Informação e Recursos Humanos da nossa equipe e organizadora de um Processo Seletivo, foi a única – friso o caráter singular do termo – que sempre me entregou trabalhos e resultados além da minha exigente expectativa e dentro dos prazos firmados.
Nunca exigi menos dela do que de outros membros. Para mim, se alguma característica se apresenta como uma barreira à pessoa, talvez ela esteja na função errada.
Alguém com problemas auditivos nunca seria colocada para responder telefonemas, assim como outra sem linguajar adequado. Um surdo teria problemas se fosse um vendedor ambulante, da mesma forma o teria um indivíduo antipático ou grosseiro.
O surdo não te ouve, o arrogante não te escuta.
Pensando nestas três etapas enquanto escrevo, indago o porquê de cada sentimento.
Será que ao ser exposto repetitivamente em mídias sociais e outros meios de comunicação que ‘devemos dar oportunidades a pessoas com deficiência’ eu pensava que seriam vulneráveis em relação aos demais?
Será que em algum nível inconsciente eu os vitimava ou estendia sua deficiência às esferas sem correlação com a debilidade física?
Ainda sigo fiel à visão meritocrata: na minha avaliação como Fundador ex-Presidente da Enactus UniSEB e da Associação Volvere, ela esteve entre os três melhores membros da organização sem que seja necessário nenhum ‘desconto’ em face da sua surdez ou dificuldade de locomoção.
Por isso tudo retomo o que falei anteriormente: era minha mais profunda inocência, minha falta de recursos internos para conceituar vulnerabilidade.
Concluo. Deixei de trabalhar com a Diéfani quando fui convidado para ir para a África do Sul ser juiz em uma competição internacional de negócios sociais e painelista em um evento privado voltado a outros juízes.
Fora neste ano que lá fora descoberto o Homo Naledi, um novo gênero da espécie humana e estando na África, continente berço da humanidade, refleti muito sobre o que nos faz ser ‘humano’.
Acredito que nós não nascemos humanos, nós nos tornamos humanos, ter trabalhado com um surdo foi trazer evolução à minha condição humana.
Ao rever conceitos que eu carregava em mim, através do convívio com uma pessoa com deficiência, pude corrigir minhas próprias deficiências.