“O preconceito que a envolve causa uma morte social que precede a morte física”
Eu ando meio sumida ultimamente, muita coisa tem acontecido e eu tenho assunto pra pelo menos mais 3 posts aqui no blog, mas no momento gostaria de tratar de um assunto que muitos desconhecem, muitos sentem na pele e outros fingem não ver: O PRECONCEITO COM SURDOS.
A ideia surgiu a partir de uma postagem de um primo meu no facebook. A postagem em questão era uma entrevista com Antonio Fagundes, falando sobre seu personagem homofobico na novela Amor à Vida na qual seu personagem tem um filho gay e a ultima pergunta que fizeram foi sobre a peça que ele está ensaiando e onde contracenará com seu filho. A resposta foi “É sobre uma família disfuncional, formada por pai, mãe e três filhos. E um dos filhos é surdo. Mas ele é criado como se não fosse. Eles o ensinam a falar e a ler lábios. Tudo corre bem até que ele conhece um garota, que também está ficando, por quem ele se apaixona. O problema é que ela está aprendendo a linguagem dos sinais e ensina pra ele. Isso causa um alvoroço na família. Agora, troque filho surdo por filho gay. Não parece a mesma discussão da novela? Estreia de 14 de setembro, no Tuca, em São Paulo. Meu filho, o Bruno Fagundes, faz o surdo.”
Esse primo meu, assim como eu, é homossexual, ativista e militante da causa LGBT e comentou o seguinte ao compartilhar o link “não, não é o mesmo “problema” entre o preconceito contra o surdo e o preconceito contra o homossexual, mesmo porque ninguém apanha na rua por ser surdo, nenhum pai deserda um filho por ser surdo.”
Minha primeira reação foi primitiva, fiquei brava, como ele poderia falar algo sem conhecer? Eu, inclusive, conheço os dois lados da moeda. Minha segunda reação foi comentar calmamente sobre discordar e o motivo de eu discordar. Minha terceira reação foi pensar e depois repensar e escrever no blog sobre o assunto.
Caros leitores, embora muitos desconheçam histórias e até pensem “mas quem vai fazer algo assim com um surdo ou um deficiente, coitadinhos?” quem vive cercado por surdos sabe que o buraco é bem mais embaixo e o problema pode sim ser considerado o mesmo. “Ah Diéfani, para de querer causar polêmica e de querer fazer os surdos de coitados.” Não, eu não estou exagerando.
Homossexuais apanham na rua, na escola, são alvos de chacota, são expulsos de casa pelos pais, são abusados sexualmente, são deserdados pela família, são humilhados, são proibidos de demonstrarem afeto em publico, em muitos lugares são proibidos de casar e muitos pais dizem que preferiam filho ladrão, bandido do que gay. “Tá a gente sabe tudo isso, mas como você ainda pode falar algo assim sobre os surdos?” amigos, os homossexuais, tem VOZ, tem muito mais espaço na mídia e não só tem muitos direitos, como são vistos pelo mundo e os surdos?
Conheci surdos usuários de LIBRAS, surdos oralizados e surdos bilíngues e vocês ficariam horrorizados com a quantidade deles, homens e mulheres que foram abusados sexualmente pelos pais ou algum cretino oportunista. Na maioria das vezes o que eles ouviram de quando eram crianças até o começo da adolescência foi “Isso vai te ajudar” e a criança sem entender o que acontecia nunca falava nada, mas mesmo depois de entenderem, aprenderam apenas a evitar, porque ao tentar contar achavam que estavam mentindo porque “quem faria isso com uma criança que nem pode ouvir?”
Na escola e nas ruas não é diferente, são apontados, são alvo de bullying e piadinhas cruéis. Conheci incontáveis surdos que disseram que apanhavam na rua pelo simples fato de serem surdos, eram agredidos porque eram “aberrações” e alvos fáceis. Há surdos que ficam na casa dos pais apenas até os 18 anos porque a lei obriga, mas com 18 anos os filhos são EXPULSOS de casa e a família nunca mais quer saber, se está morto ou se está vivo “não é problema deles.”
Muitas crianças surdas são criadas sem aprender nenhuma forma de comunicação, cresce com os pais que são dois estranhos com quem mal conseguem se comunicar e o contato com o mundo exterior é ZERO, se ela for inserida na sociedade ela não vai conseguir nem dar oi pra uma pessoa. Muitos desses são mais tarde “salvos” por alguém, que com muita paciência os levam pra escolas de surdos, onde se alfabetizam e aprendem a se comunicar, mas é assustadora a quantidade de surdos que ficam pra trás.
Para uma criança nascida em família ouvinte, antigamente muitas vezes eram trancados em hospitais psiquiátricos até o fim da vida, mas existe os casos das famílias que levam a criança em uma fono para falarem, usarem aparelhos auditivos, fazem implantes cocleares, ensinam a ler lábios mas se o filho acaba se interessando pelo “mundo” surdo e quer ter amigos surdos, aprender LIBRAS e coisas desse tipo, é como se estivessem assassinando alguém. A família não aceita, acha errado e quer que o filho viva uma vida “normal” com gente “normal”.
Por outro lado, há as crianças surdas que nascem em famílias surdas e são deserdadas, humilhadas pela família e comunidade surda em que vivem, quando querem aprender a falar ou até usar um implante coclear. Para a família não existe coisa pior, eles dizem que se sentem rejeitados pelo membro da família que quer “ser ouvinte” e dizem coisas como “ele vai ser uma aberração, não vai ser surdo e nem ouvinte, ninguém vai aceita-lo é melhor que morresse.”
Há ainda os casos de preconceito de Surdos usuários de LIBRAS contra os Surdos usuários da Língua Portuguesa e vice-versa. Em fóruns de discussão já vi Surdos sinalizantes desejarem a morte para a filha de uma amiga minha, que é surda oralizada e falarem que surdos oralizados são potenciais suicidas. E surdos oralizados dizendo que o usuário de LIBRAS não deveria estar naquele espaço se não domina a Língua Portuguesa.
Fora aqueles probleminhas HUMILHANTES que acontecem com praticamente todos no dia-a-dia. Tem que pegar senha mas não dá pra ouvir chamar e não tem monitor, tem que resolver algo pelo SAC de uma empresa mas não pode ser outra pessoa, não pode ser numa loja física da empresa e nem por e-mail ou chat, TEM QUE SER POR TELEFONE. Vai estudar e às vezes acontece de alguém dizer “seu lugar não é aqui, deveria ir pra escola especial”, precisa pedir acompanhante em um aeroporto porque não ouve os auto falantes e não dá pra se virar completamente sozinho. Tem que quase ajoelhar na frente de um professor e implorar pra que ele explique a matéria virado pra frente pra que possa ler os lábios. Acabar não indo a certos lugares como teatro, cinema porque não tem legenda e interprete de LIBRAS. Mercado de trabalho? Até por cota é difícil conseguir um emprego, na maioria dos lugares eles aceitam deficientes físicos, visuais, mas surdos não, porque a surdez “atrapalha a comunicação”. Um a amiga uma vez disse que estava com o marido na feira e falavam sem som, já que ele apesar de ouvinte aprendeu a ler lábios e uma senhora perguntou o motivo para aquilo e ele explicou que a minha amiga é surda e a mulher “Ah que bom que você trouxe ela pra dar uma voltinha” como se a minha amiga fosse um cachorro ou uma inutil. Outros ainda ficam horrorizados ao saber que podemos dirigir porque somos “perigosos” por não ouvir sirenes e buzinas.
E quem fala por todos esses que sofrem discriminação? Ninguém. O fato é que num geral, somos invisíveis pra sociedade. Não tem para surdos, boates, bares, restaurantes, hotéis e outras coisas que são focadas naquele grupo e seus simpatizantes. Mal há escolas especiais (que alguns preferem), algumas escolas se recusam a aceitar um aluno por ele ser surdo. É como se por sermos surdos, devêssemos ficar enfiados em casa.
Para um gay, a opção de dizer “Eu sou gay” existe, mas para um surdo não, se um surdo quer ter uma boa comunicação com todos ao seu redor, precisa sempre avisar e falar “Eu sou surdo” ao que quase instantaneamente se ouve depois “mas tão bonita” ou “nossa que dó” entre outros absurdos. Isso quando não acham que é contagioso e tiram seus filhos de perto (sim em pleno século XXI isso ainda existe). Ai dizem “Ah mas na maioria dos lugares gays não podem casar” bom sabiam que até pouco atrás em muitos países, casamentos entre surdos era proibido, assim como casamento inter racial e que isso só mudou porque nem sei quem, viu que era ridículo?
Estamos há anos tentando conquistar um direito MÍNIMO de ter closed caption ou legendas em programas de TV, cinemas, teatros, mesmo quando for algo dublado ou nacional e nem isso conseguimos. E o motivo? Como eu disse, somos invisíveis. Só pra deixar claro, pessoas com deficiência num geral são invisíveis e às vezes ser invisível cansa e muitas vezes leva a querer desistir de tudo, inclusive da própria vida. Enquanto isso, homossexuais tem espaços exclusivos, casamento tá sendo legalizado, entre muitas outras coisas.
Tudo isso me fez lembrar uma frase do filme Filadélfia, com Tom Hanks “O Ato Federal de Reabilitação Vocacional de 1973 proíbe discriminação contra pessoas deficientes e com qualificação capazes de executar as tarefas exigidas pelo seu emprego. Apesar da lei não se referir diretamente à discriminação relacionada ao HIV e à AIDS, decisões subsequentes sustentaram que a AIDS é considerada como deficiência dentro da lei, não apenas por causa das limitações físicas que impõe, mas porque o preconceito que a envolve causa uma morte social que precede a morte física. Esta é a essência da discriminação: formular opiniões sobre outros, baseadas não em seus méritos individuais, mas em sua afiliação a um grupo com supostas características.”
As palavras desse projeto de Lei são diferentes, essa frase tem o intuito de explicar de uma forma que possa ser compreendido, e o foco do filme era AIDS, mas a parte da morte social que precede a morte física está lá mesmo antes da AIDS ter sido introduzida como uma deficiência perante a lei. Refletindo, morte social é um termo extremamente pesado, mas o preconceito em relação às pessoas com deficiência e isso inclui os surdos causa uma morte social e o que pode ser pior do que estar vivo, mas morto pra sociedade?
Esse post teve o intuito de única e simplesmente dizer que ninguém deve falar daquilo que não sabe, daquilo que não conhece e de meios em que não vive, a grama do vizinho sempre parece mais verde e os nossos problemas sempre nos parecem piores. E como eu disse, ser invisível às vezes cansa, queremos ser vistos, mais do que vistos, queremos ser ouvidos e sermos vivos aos olhos da sociedade.
Parabéns pelo texto muito profundo e esclarecedor, pra mim que sou ouvinte e estou estudando um pouco de libras foi bem útil. Muitas vezes parecemos ter preconceito, mais não é por maldade, é só pelo fato de não sabermos como falar com pessoas surdas.
Parabéns!Disse tudo sobre o universo dos Surdos.
disse tudo, incrível, a gente tenta não pensar em coisas ruins ou tristes mas você conseguiu juntar coisas reais, e mostrar uma realidade que muitas vezes a gente não vê ou não quer ver. Parabéns
Nossa que texto espetacular.Falou dos surdos em geral, queiram ser oralizados ou sinalizados, continuam invisíveis.
Ano passado, conheci um moço surdo que morava em uma aldeia indígena na Bahia, perto da capital, e ficava preso em uma oca, sim estamos falando do século XXI, Brasil ano 2012.Os pais não sabiam como lidar com ele,até que uma ONG foi lá ajudar e explicaram que ele era surdo, mas podia fazer muita coisa.Não precisava ser hostilizado, separado do mundo e não era aberração.O levaram para a cidade, e hoje ele estuda e trabalha.
Eu fiquei pasma, depois soube de vários casos de abusos e como vc disse estas crianças podiam se defender como?Sem poder gritar e falar??!!
Surdez, a deficiência mais invisível que existe e que a sociedade não enxerga!
Não, não se deve comparar dores e dificuldades alheias,cada um sabe da sua luta!Mas deve-se sempre respeitar a dor e dificuldades do próximo.
Di, adorei o post! Achei de grande profundidade e relevância social! Muitas vezes as pessoas tendem a acreditar que os seus problemas/suas dificuldades são maiores do que as dos outros, mas se esquecem de que cada pessoa, tenha ela deficiência ou não, vive um universo particular, repleto de acontecimentos que somente quem os vive no dia-a-dia sabe como realmente é. Não acredito que existam dores/dificuldades maiores ou menores para grupos específicos, mas acredito que a dor de cada um, é de cada um! Cada pessoa tem uma história de vida, seus dramas, suas lutas, suas descobertas, suas conquistas e isso não faz ninguém melhor ou pior, não faz os problemas maiores ou menores, não faz a vida mais fácil ou mais difícil, demonstra apenas que todos temos nossas adversidades e o direito de sermos respeitados perante elas. Cada um vive em intensidade o seu problema/a sua dificuldade, o que não pode ser medido ou comparado! Seu post demonstra a necessidade de descentralização e de humanização do olhar de quem vê, sente, ouve e vive, seja de qual forma for…Bjos
Meus parabéns pelo texto e tenho certeza que esse texto servirá de referencia a muito outros que virão em defesa a causa.
Muito bacana a matéria! Mesmo é dificil para a sociedade ouvinte ainda não enxergam que existimos!!!
Belo texto, profundo, intenso, me deixou com a emoção a flor da pele. Parabéns pela coragem de esclarecer sobre realidade de ser surdo e, do preconceito que existe. Mas, é com textos como esse que as pessoas acabam tendo que refletir sobre aquilo que acontece e que elas desconhecem.
nossa, fiquei sem palavras…disse tudinho e algo mais.
Para quem não sabe o primo que a Diéfani cita, sou eu!!!
Diéfani, preciso ler e reler seu texto para que tenhamos um diálogo construtivo, li rápidamente e quero ler com calma, assim, não vou entrar no mérito da questão (por hora, apenas por hora rsrs, depois “brigaremos legal” rsrs), mas quero dizer que estou orgulhoso de você!!! Que bacana, que guerreira defendendo uma causa com paixão e sabedoria(uma legítima Favaretto rsrs), este nosso sangue Itálico não nos deixa fora das brigas.
Voltaremos a discutir a questão e fique com minha enorme ADMIRAÇÃO.
GRANDE BEIJO.
JUSTO